1. Introdução
O Simples Nacional, criado pela Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, é o regime de recolhimento unificado de impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, devidos pelas microempresas e empresas de pequeno porte.
Entretanto, nem tudo será recolhido unificadamente. Algumas hipóteses de incidência foram expressamente ressalvadas, bem como o uso de determinadas técnicas de tributação, como a de substituição tributária e a de antecipação do ICMS.
No presente artigo, pretende-se analisar a faculdade, que a lei referida não retirou dos entes tributantes, de exigir o ICMS de forma antecipada. Notadamente, cabe verificar quais os limites de utilização legítima desse mecanismo.
A faculdade de que se trata está prevista no art. 13, § 1º, da Lei Complementar nº 123/2006, com a redação que lhe deu a Lei Complementar nº 128, de 19 de dezembro de 2008, nos termos que seguem:
“Art. 13. O Simples Nacional implica o recolhimento mensal, mediante documento único de arrecadação, dos seguintes impostos e contribuições:
[…]
VII – Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS;
[…]
§ 1º O recolhimento na forma deste artigo não exclui a incidência dos seguintes impostos ou contribuições, devidos na qualidade de contribuinte ou responsável, em relação aos quais será observada a legislação aplicável às demais pessoas jurídicas:
[…]
XIII – ICMS devido:
[…]
g) nas operações com bens ou mercadorias sujeitas ao regime de antecipação do recolhimento do imposto, nas aquisições em outros Estados e Distrito Federal:
1. com encerramento da tributação, observado o disposto no inciso IV do § 4o do art. 18 desta Lei Complementar;
2. sem encerramento da tributação, hipótese em que será cobrada a diferença entre a alíquota interna e a interestadual, sendo vedada a agregação de qualquer valor;”
2. Da antecipação do ICMS
A antecipação, de que trata a lei, nada tem a ver com a simples alteração da data de recolhimento. A hipótese diz respeito à exigência do tributo antes da ocorrência do fato gerador. Esse procedimento encontra previsão no art. 150, § 7º, da Constituição Federal, que tem o seguinte teor:
“§ 7º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.”
É a mesma técnica de que se vale a substituição tributária “para frente”. A diferença entre uma e outra é que, na antecipação, exige-se o tributo originário do fato gerador que o contribuinte realizará, ao passo que na substituição tributária há antecipação do tributo decorrente do fato gerador a ser praticado por terceiro, razão porque atua como substituto, na qualidade de responsável tributário.
O Supremo Tribunal Federal já se manifestou pela constitucionalidade do procedimento em diversos julgados, dos quais destacou o da ADI nº 3.426, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence (j. 22/03/2007), cujo objeto era lei do Estado da Bahia que instituiu a antecipação do ICMS nas aquisições interestaduais, independente do regime de apuração adotado pelo contribuinte.
Do mesmo modo, a Corte Suprema, no julgamento do RE 194.382, de relatoria do Ministro Maurício Corrêa (25/04/2003), consignou que “a cobrança antecipada do ICMS por meio de estimativa constitui simples recolhimento cautelar enquanto não há o negócio jurídico de circulação, em que a regra jurídica, quanto ao imposto, incide”.
E essa antecipação pode ser integral – denominada antecipação com encerramento da tributação – ou parcial – sem encerramento da tributação.
Embora a Lei Complementar nº 123/2006 e as resoluções do Comitê Gestor do Simples Nacional não tenham disciplinado a matéria, a exigência antecipada do ICMS tem limites impostos pela própria natureza do regime, bem como pela Constituição Federal.
É o que se passa a analisar.
2.1 Antecipação com encerramento da tributação
Na antecipação com encerramento da tributação, considera-se a exação integralmente satisfeita quando do recolhimento antecipado, de modo que, na ocorrência efetiva do fato gerador outrora presumido, não há nova incidência tributária e tampouco diferença a recolher.
É por esta razão que as receitas dessas operações são segregadas tal como as sujeitas ao regime de substituição tributária progressiva. E o motivo é muito simples, pois, se a mercadoria já foi tributada integralmente quando da aquisição, não cabe exigir novamente o mesmo tributo sobre o mesmo fato gerador.
Pois bem. Se é certo que o Estado pode exigir antecipadamente o ICMS de um contribuinte optante do Simples Nacional, a mesma certeza não se tem quanto aos critérios que limitam essa faculdade. Embora a Lei Complementar nº 123/2006 tenha atribuído ao Comitê Gestor do Simples Nacional a prerrogativa de disciplinar a forma e as condições em que será estabelecido o regime de antecipação do ICMS (art. 13 § 6º, II), até o presente momento não se tem notícia de que essa competência foi exercida.
Questão que se impõe diz respeito à alíquota que deve incidir quando houver antecipação com encerramento da tributação. Afinal, o ICMS será devido pela alíquota do regime comum, ou pela prevista no Simples Nacional? Particularmente, penso que a discricionariedade do ente tributante está apenas na estipulação da margem de agregação de valor, de modo que a alíquota incidente deve ser aquela do regime simplificado. Afinal, antecipa-se o que seria devido. E a alíquota devida é aquela estipulada na Lei Complementar nº 123/2006.
Caso contrário, estar-se-ia usando a técnica de antecipação como instrumento de guerra fiscal, vedada pelo art. 152, da Constituição Federal. A antecipação é apenas uma forma de tributação que visa a melhorar a eficiência arrecadatória e evitar a evasão fiscal, não um modo oblíquo de majorar tributo ou de obstar a concorrência de contribuintes de outros Estados.
Aliás, conspira a favor desse entendimento o fato de que o optante do Simples Nacional, quando substituto tributário, recolhe o ICMS relativo a suas operações próprias no regime simplificado (art. 3º, § 7º, da Resolução CGSN nº 51, de 22 de dezembro de 2008), estando sujeito à legislação comum apenas quanto à parcela devida a título de substituição.
Isso revela que foi facultado ao Estado apenas o uso da técnica de substituição ou antecipação. Não tem o Estado, portanto, a prerrogativa de afastar os benefícios do Simples Nacional – no caso a alíquota reduzida – em relação as operações submetidas à antecipação.
Essa interpretação ainda tem a vantagem de assegurar a isonomia no tratamento tributário, pois, se considerarmos que a antecipação deve se dar de acordo com a legislação comum, haverá desequilíbrios quando o fornecedor do outro Estado também for optante do Simples Nacional.
A conclusão a que se chega é que, na antecipação com encerramento da tributação, há estimativa do valor de venda da mercadoria, mediante a adição de margem de agregação de valor, incidindo sobre aquele a alíquota própria do Simples Nacional.
2.2 Antecipação sem encerramento da tributação
Na antecipação sem encerramento da tributação exige-se apenas parte do tributo devido na operação que se presume, razão porque ela também é chamada de antecipação parcial.
E porque é parcial, não encerra a tributação, de modo que o restante do tributo deverá ser recolhido oportunamente, quando da ocorrência efetiva do fato gerador.
É nessa modalidade que reside a grande controvérsia entre Fisco e contribuintes, que ensejou, inclusive, o controle concentrado da constitucionalidade do dispositivo, na ADI nº 4.384 ajuizada pela Confederação Nacional dos Dirigentes e Logistas.
Como o Comitê Gestor do Simples Nacional não disciplinou a forma e as condições em que será estabelecido o regime de antecipação do ICMS, de acordo com o art. 13 § 6º, II, da Lei Complementar nº 123/2006, os Estados se acharam livres para estabelecer a obrigatoriedade de antecipação parcial, limitados apenas pela vedação à agregação de valor e pela possibilidade de exigir tão-somente a diferença entre a alíquota interna e a interestadual.
Contudo, na prática, os Estados estão se valendo da antecipação parcial como um modo de majorar a alíquota do tributo e como instrumento de proteger os contribuintes internos da concorrência daqueles estabelecidos em outros Estados.
Como já mencionado, na antecipação sem encerramento da tributação há o recolhimento apenas de parte do tributo – diferentemente da antecipação integral -, de modo que o restante deverá ser recolhido quando da efetiva ocorrência do fato gerador.
Entretanto, não é bem assim que tem sido feito. A receita da venda de mercadoria que já teve parte do ICMS antecipado é submetida à tributação integral do ICMS no Simples Nacional, naturalmente. O que era de se esperar é que houvesse um mecanismo de abater o imposto antecipado, sem o qual a exigência é inconstitucional por tributar duplamente um mesmo fato gerador.
Aliás, a compensação desse crédito é essencial para o funcionamento da antecipação parcial. No regime comum, essa compensação se dá mediante escrituração do crédito recolhido antecipadamente. Entretanto, os contribuintes optantes pelo Simples Nacional não podem se apropriar de créditos, conforme dispõe o art. 23, da Lei Complementar nº 123/2006. Dessa forma, estes são obrigados a antecipar parte do imposto e, quando da ocorrência efetiva do fato gerador, pagam o tributo integralmente, sem levar em consideração que parte dele já foi antecipado.
Nesse quadro, o que era para ser antecipação cautelar do imposto passa a ser majoração da alíquota, pura e simplesmente. E é uma majoração que atinge apenas as aquisições interestaduais, o que ressalta a sua finalidade de estabelecer diferença tributária entre bens e serviços unicamente em razão de sua procedência, prática vedada pelo art. 152, da Constituição Federal.
Sem falar que a intenção do Fisco tem sido a de desestimular a aquisição de produtos em outros Estados, mediante a oneração tributária, o que evidencia o intuito de limitar o tráfego de bens por meio de tributo interestadual, prática também vedada pela Constituição Federal, no seu art. 150, V.
3. Conclusão
Seria salutar que o Comitê Gestor do Simples Nacional estabelecesse a disciplina da antecipação do ICMS, para evitar esse ambiente que fomenta a guerra fiscal entre os Estados, bem como a insegurança dos contribuintes. E no que diz respeito à antecipação sem encerramento da tributação, penso que não seria possível exigi-la sem a previsão de compensação quando da efetiva ocorrência do fato gerador.
E, nessa disciplina, há de ser prevista, também, a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso o fato gerador presumido não se realize (art. 150, § 7º, da Constituição Federal).
Aguardemos o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4.384.